domingo, 15 de junho de 2008

ELEGIA

Machado de Assis - Crisálidas

A bondade choremos inocente
Cortada em flor que, pela mão da morte,
Nos foi arrebatada dentre a gente.
CAMÕES
SE, COMO OUTRORA, nas florestas virgens,
Nos fosse dado—o esquife que te encerra
Erguer a um galho de árvore frondosa
Certo, não tinhas um melhor jazigo
Do que ali, ao ar livre, entre os perfumes
Da florente estação, imagem viva
De teus cortados dias, e mais perto
Do clarão das estrelas.

Sobre teus pobres e adorados restos,
Piedosa, a noite ali derramaria
De seus negros cabelos puro orvalho
À beira do teu último jazigo
Os alados cantores da floresta
Iriam sempre modular seus cantos
Nem letra, nem lavor de emblema humano,
Relembraria a mocidade morta;
Bastava só que ao coração materno,
Ao do esposo, ao dos teus, ao dos amigos,
Um aperto, uma dor, um pranto oculto,
Dissesse: —Dorme aqui, perto dos anjos,
A cinza de quem foi gentil transunto
De virtudes e graças.

Mal havia transposto da existência
Os dourados umbrais; a vida agora
Sorria-lhe toucada dessas flores
Que o amor, que o talento e a mocidade
À uma repartiam.

Tudo lhe era presságio alegre e doce;
Uma nuvem sequer não sombreava,
Em sua fronte, o íris da esperança;
Era, enfim, entre os seus a cópia viva
Dessa ventura que os mortais almejam,
E que raro a fortuna, avessa ao homem.
Deixa gozar na terra.

Mas eis que o anjo pálido da morte
A pressentiu feliz e bela e pura
E, abandonando a região do olvido,
Desceu à terra, e sob a asa negra
A fronte lhe escondeu; o frágil corpo
Não pôde resistir; a noite eterna
Veio fechar seus olhos
Enquanto a alma abrindo
As asas rutilantes pelo espaço.
Foi engolfar-se em luz, perpetuamente,
Tal a assustada pomba, que na árvore
O ninho fabricou,—se a mão do homem
Ou a impulsão do vento um dia abate
No seio do infinito
O recatado asilo,—abrindo o vôo,
Deixa os inúteis restos
E, atravessando airosa os leves ares
Vai buscar noutra parte outra guarida.

Hoje, do que era inda lembrança resta
E que lembrança! Os olhos fatigados
Parecem ver passar a sombra dela
O atento ouvido inda lhe escuta os passos
E as teclas do piano, em que seus dedos
Tanta harmonia despertavam antes
Como que soltam essas doces notas
Que outrora ao seu contacto respondiam.

Ah! pesava-lhe este ar da terra impura
Faltava-lhe esse alento de outra esfera,
Onde, noiva dos anjos, a esperavam
As palmas da virtude.
Mas, quando assim a flor da mocidade
Toda se esfolha sobre o chão da morte,
Senhor, em que firmar a segurança
Das venturas da terra? Tudo morre;
A sentença fatal nada se esquiva,
O que é fruto e o que é flor. O homem cego
Cuida haver levantado em chão de bronze
Um edifício resistente aos tempos
Mas lá vem dia, em que, a um leve sopro,
O castelo se abate,
Onde, doce ilusão, fechado havias
Tudo o que de melhor a alma do homem
Encerra de esperanças.

Dorme, dorme tranqüila
Em teu último asilo: e se eu não pude
Ir espargir também algumas flores
Sobre a lájea da tua sepultura;
Se não pude,—eu que há pouco te saudava
Em teu erguer, estrela,—os tristes olhos
Banhar nos melancólicos fulgores,
Na triste luz do teu recente ocaso,
Deixo-te ao menos nesses pobres versos
Um penhor de saudade , e lá na esfera
Aonde aprouve ao Senhor chamar-te cedo
Possas tu ler nas pálidas estrofes
A tristeza do amigo.

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