quarta-feira, 27 de maio de 2009

Última Página

Manuel Alegre

Vou deixar este livro. Adeus.

Aqui morei nas ruas infinitas.

Adeus meu bairro página branca

onde morri onde nasci algumas vezes.

Adeus palavras comboios

adeus navio. De ti povo

não me despeço. Vou contigo.

Adeus meu bairro versos ventos.

Não voltarei a Nambuangongo

onde tu meu amor não viste nada. Adeus

camaradas dos campos de batalha.

Parto sem ti Pedro Soldado.

Tu Rapariga do País de Abril

tu vens comigo. Não te esqueças

da primavera. Vamos soltar

a primavera no País de Abril.

Livro: meu suor meu sangue

aqui te deixo no cimo da pátria

Meto a viola debaixo do braço e viro a página.

Adeus.

Fim

Mário de Sá-Carneiro

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos berros e aos pinotes —
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.
Que meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro...
(Paris, 1916)

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Intermitências

Bia Loivos

In

in-ter

in-ter-mi

in-ter

in-ter-mi-ten

in

in-ter-

in-ter-mi-

ten-te.

in-ter-mi-ten-te.

Chuva de vento

Bia Loivos

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u u u u u u u u u u u u u u u u u

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a a a a a a a a a a a a a a a a a

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Poema Concreto

Bia Loivos

tijolo pedra
pá pedreiro prego:
prédio
presídio
prisão.
Fraco de fome
Cimentando a dor
bóia-fria, trabalhador.

Rotina

Bia Loivos


Noite Dia Noite Dia
Noite Dia
Noite.

Dia Noite
Dia Noite
Dia e.

Tudo se repete,
mas HOJE é tudo diferente.



Foto: zezinhomota.blogs.sapo.pt

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Quase

Mário de Sá-Carneiro

Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Coisa amar

Manuel Alegre

Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te logamente como doi

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

domingo, 3 de maio de 2009

Maio: mês de Mário de Sá-Carneiro e Manuel Alegre

mario-sa-carneiroman_alegre

Em maio, o blog presta homenagem, não a um, mas a dois poetas. Assim, resolvo a dificuldade da escolha e fico em paz com a consciência e com a poesia!

Pois bem. É hora de apresentar nossos homenageados e dizer o porquê desta escolha. Tentarei fazer isso intercalando informações ora sobre Mário de Sá-Carneiro, ora sobre Manuel Alegre. Este texto, porém, não pretende ser uma descrição pormenorizada da vida dos poetas (abaixo darei indicações de onde as encontrar), mas um comentário mais geral de alguns pontos selecionados em que, ora suas biografias se aproximam, ora se afastam. Mas antes, deixem-me explicar por que Sá-Carneiro e Manuel Alegre.

Conheci a obra de Mário de Sá-Carneiro através da cantora Adriana Calcanhotto. Parece estranho, mas foi exatamente assim: o cd Público, já citado aqui no blog, traz um poema do escritor musicado pela cantora brasileira. Talvez muitos aqui também conheçam a canção “O Outro”, que diz assim: “Eu não sou eu/ nem sou o Outro/Sou qualquer coisa de intermédio/pilar da fonte de tédio/que vai de mim para o outro”. Esses versos traduzem bem a tônica da poesia de Sá-Carneiro: uma busca angustiante por definir a si e ao seu mundo. Depois disso, instigada pela música, procurei e conheci outros poemas, além de ter lido também a novela A confissão de Lúcio, que, sem querer, encontrei na casa da minha avó, entre as coisas da prima Anabelle.

E por falar nela, foi também Anabelle quem me apresentou ao poeta e político português Manuel Alegre, através do livro Cão como Nós, aliás, leitura belíssima e muito prazerosa. Agora que expliquei brevemente os motivos da dupla homenagem, já posso continuar.

Dizia eu que, ao lermos a biografia de cada um, podemos identificar semelhanças e diferenças. Entre os fatores que os aproximam, podemos citar a nacionalidade portuguesa e a inseparabilidade da vida e da poesia. A respeito da última, Alegre, em um texto autobiográfico do site que leva o seu nome, escreve: “Escrita e vida são inseparáveis. Embora eu entenda a poesia como experiência mágica, algo que está aquém e além da literatura.” Se a escrita é inseparável da vida do poeta, a poesia de Mário de Sá-Carneiro é um ótimo exemplo desta ligação. Basta analisarmos seus poemas e logo somos levados a reconhecer ali a confusão mental e a angústia dilacerante que levariam o jovem poeta ao suicídio aos 26 anos de idade.

Temos na morte outra possibilidade de aproximação entre os dois poetas. Manuel Alegre, vivo e atuante no cenário político português atual, tendo sido candidato à Presidência em 2005, não esconde sua angústia da morte ao revelar: “Tenho desde pequeno a obsessão da morte. Não o medo, mas a consciência aguda e permanente, sentida e vivida com todo o meu ser, de que tudo é transitório e efémero e não há outra eternidade senão a do momento que passa”. Mas, se a consciência da morte se faz presente, não tem como efeito diminuir as forças do poeta e o seu desejo de viver. Ao contrário, Alegre deixa claro que nunca viveu postumamente e que não procurou se construir por meio da literatura, na qual nem sequer acredita. Mas, “na poesia, sim”.

Temos aqui uma comparação paradoxal, pois, se é verdade que a obsessão da morte aproxima a vida dos dois escritores, a forma como cada um viveu esta obsessão revela diferenças fundamentais: Sá-Carneiro resolve o sofrimento através do suicídio; Alegre, através da própria vida.

Há muitas informações interessantes sobre a vida de ambos os poetas, e recomendo que vocês não desprezem tal leitura. Meu texto teve a intenção de despertar a curiosidade e indicar-lhes o caminho. Assim, os links abaixo são dos sites que serviram de fonte de consulta para mim e que podem ajudar a esclarecer os pontos que não abordei aqui, a quem tiver interesse de conhecer um pouco melhor. Boa leitura e até a próxima!

Bia Loivos.

http://www.manuelalegre.com/index.php?area=1500

http://www.algumapoesia.com.br/poesia/poesianet070.htm

http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/alegre.html

http://www.astormentas.com/carneiro.htm