quarta-feira, 22 de abril de 2009

Poemas aos homens do nosso tempo

Hilda Hilst

IV
A Frederico Garcia Lorca

Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
Quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu
Pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
Que bebi na tua boca a fúria de umas águas
Eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
Porque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.
Ah, se soubesses como ficou difícil a Poesia.Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.
E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória
E cantar de repente: “os arados van e vên
desde a Santiago a Belén”.
Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
A tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:
Deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?
“El passado se pone
su coraza de hierro
y tapa sus oídos
con algodón del viento.
Nunca podrá arrancársele
un secreto.”
E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
Azuis, brancos e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
De infância, o plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.

Hilda Hilst é maravilhosa. Mas este poema, em especial, me emocionou demais. Quanta beleza, quanto amor e admiração se podem sentir nesses versos a Garcia Lorca!

Amavisse (Contra-capa)

Hilda Hilst

O escritor e seus múltiplos vem vos dizer adeus.
Tentou na palavra o extremo-tudo
E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância
Foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura.
A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito
Tempo-Nada na página.
Depois, transgressor metalescente de percursos
Colou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra.
Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar.
A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo.
O Caderno Rosa é apenas resíduo de um "Potlatch".
E hoje, repetindo Bataille:
"Sinto-me livre para fracassar".

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio

Hilda Hilst

III
A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?

VI
Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães
E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressaga
Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:
Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta
Quando tu, Dionísio, não estás.

In: hildahilst.com.br

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Curiosidades


Que curiosa é a vida. Justo agora, que estou num momento tão musical, resolvi homenagear Hilda Hilst e descobri que a poetisa, em parceria com Zeca Baleiro, lançou um cd, com poemas dela musicados por ele. Incrível!

A iniciativa foi de Hilda, após ouvir um cd do artista, enviado a ela pelo própio Zeca. Conta-se que remeteu ao músico um disquete com seus poemas e propôs a parceria, que virou o disco Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé - De Ariana para Dionísio, primeiro capítulo do livro Júbilo Memória Noviciado da Paixão, de Hilst.

O disco conta com a participação de várias cantoras e, segundo o que andei pesquisando, o resultado é de uma sonoridade muito gostosa.

Ainda não ouvi o cd, mas estou encantada com a novidade e curiosa para conhecer essa mistura. Parece mesmo a cara do Zeca, que gosta é de embolar as coisas, misturá-las. Parece mesmo a cara de Hilda, que sempre foi considerada uma mulher à frente de seu tempo, ousada, que descontrói padrões e preconceitos.

Vamos à poesia:

I
É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.


II
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.



Continua...
Foto: originalmente em uol.com.br

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Abril - mês de Hilda Hilst



Paulistana de Jaú, nascida no dia 21 de abril de 1930 e falecida a 4 de fevereiro de 2004, Hilda Hilst é reconhecida, quase pela unanimidade da crítica brasileira, como uma das nossas principais autoras, sendo consideradas uma das mais importantes vozes da Língua Portuguesa do século XX. Segundo o crítico Anatol Rosenfeld, “Hilda pertence ao raro grupo de artistas que conseguiu qualidade excepcional em todos os gêneros literários que se propôs - poesia, teatro e ficção”.


Distinguida por vários de nossos mais significativos prêmios literários, presente em numerosas antologias de poesia e ficção, tanto nacionais como estrangeiras, há muito seu nome está incluído nos dicionários de autores brasileiros contemporâneos.De temperamento transgressor, prezando a liberdade, dona de uma rara beleza e coragem, culta e poeta, Hilda teve uma personalidade marcante e sedutora que ia de encontro aos costumes tradicionais vigentes nos anos 50, criando-se um folclore ao seu redor que, segundo alguns críticos, até chegou a ofuscar a importância de sua obra.


Seu trabalho vem sendo tema de teses universitárias em nível de pós graduação e merecido traduções para o francês, inglês, espanhol, alemão e italiano, atraindo a atenção da crítica internacional, que já lhe dedicou artigos no Le Monde, L’infint, Libération, The Antigonish Review, Pleine Marge, entre outros.



Criadora de textos magníficos, onde Atemporalidade, Real e Imaginário se fundem e os personagens mergulham no intenso questionamento dos significados, buscando compreensão, resgate da raiz, encontro do essencial, Hilda retrata sem cessar nossa limitada/ilimitada, frágil e surpreendente condição humana. Segundo o crítico literário Léo Gilson Ribeiro, a ficção de Hilda Hilst “submerge o leitor num mundo intrépido de terror e tremor, de beleza indescritível e de uma fascinante prospecção filosófica sobre o Tempo, a Morte, o Amor, o Horror, a Busca”.


A abrangência de linguagem conseguida por Hilda Hilst, capaz de abarcar o coloquial mais chulo e a poesia mais intensa, alia-se à complexidade do Universo da autora, tornando-a uma das mais importantes vozes para descrever, com profunda e comovente fidelidade, a solidão, perplexidade e grandeza do Homem diante do Mundo.

Adaptado de J.L. MORA FUENTES para o Portal Cultural Hilda Hilst.


Vale a pena conhecer.

domingo, 5 de abril de 2009

Esquadros

Hoje deu vontade de ouvir o Público, de Adriana Calcanhotto.
Hoje, a letra de Esquadros me tocou de forma particular. Talvez pelo tom nostálgico, que muito me afeta, e certamente pela possibilidade de termos apenas um remoto controle das coisas da vida, do tempo, das pessoas que correm e escorrem de nós...

Então, hoje, minha homenagem à poesia nossa de cada dia e de cada música se fará através desta composição.


Esquadros

Adriana Calcanhotto


Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome

cores de Almodóvar

cores de Frida Kahlo, cores

passeio pelo escuro

eu presto muita atenção no que meu irmão ouve

e como uma segunda pele, um calo, uma casca,uma cápsula protetora

eu quero chegar antes

pra sinalizar o estar de cada coisa

filtrar seus graus

Eu ando pelo mundo divertindo gente

chorando ao telefone

e vendo doer a fome nos meninos que têm fome

Pela janela do quarto

pela janela do carro

pela tela, pela janela

(quem é ela, quem é ela?)

eu vejo tudo enquadrado

remoto controle

Eu ando pelo mundo

e os automóveis correm para quê?

as crianças correm para onde?

transito entre dois lados de um lado eu gosto de opostos

exponho o meu modo, me mostro

eu canto para quem?

Pela janela do quarto

pela janela do carro

pela tela, pela janela

(quem é ela, quem é ela? )

eu vejo tudo enquadrado

remoto controle

Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?

minha alegria, meu cansaço?

meu amor cadê você?

eu acordei

não tem ninguém ao lado

Pela janela do quarto

pela janela do carro

pela tela, pela janela

(quem é ela, quem é ela?)

eu vejo tudo enquadrado

remoto controle