sábado, 27 de setembro de 2008

Traduzir-se

Ferreira Gullar

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Aprendizado

Ferreira Gullar

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Um instante

Ferreira Gullar

Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis

sem começo
nem fim

aqui me tenho
sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um bicho
transparente

domingo, 14 de setembro de 2008

Filhos

Ferreira Gullar

Daqui escutei
quando eles
chegaram rindo
e correndo
entraram
na sala
e logo
invadiram também
o escritório
(onde eu trabalhava)
num alvoroço
e rindo e correndo
se foram
com sua alegria

se foram

Só então
me perguntei
por que
não lhes dera
maior
atenção
se há tantos
e tantos
anos
não os via crianças

já que
agora
estão os três
com mais
de trinta anos.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

10 de setembro

Neste 10 de setembro, aniversário de Ferreira Gullar, peço licença ao poeta para publicar aqui não um poema seu, mas um texto do meu namorado, e grande amor, Patrick, que também nasceu nesta data e tem dotes poéticos igualmente dignos de nota!
Meu amor gosta de dizer que tem alma de poeta. Concordo! Você, entre todos, tem a minha completa admiração, porque tem também meu carinho e meu amor incondicionais.
Em homenagem a você, meu aniversariante predileto, publico aqui um trecho de uma carta sua. Para que os eventuais leitores deste blog fiquem cientes que o dito "amor verdadeiro" existe, sim, e que é o sentimento mais lindo e reconfortante do mundo!
Amo você, para sempre.
Sempre sua,
Bia Rosa.

"Nosso amor é uma velha novidade para mim; é como o pôr do sol, ou mesmo o nascer dele, é como a chuva, as ondas do mar, as listras de um tigre, um grão de pólen. É uma coisa tão original e nova a cada dia, que me surpreende sempre.
Só de ler suas saudações, ou ouvir sua voz novamente, me pego numa contemplação do infinito manancial de beleza que brota de você. Ao ver-te, então, isso fica mais evidente: os traços do seu rosto, as curvas do seu corpo, seu sorriso, seus pêlos, sua carne e epiderme, sua cor, seu cheiro, sua voz, seu toque, sua respiração, seu carinho... Têm uma pluralidade tão grande, que te contemplar é sempre um desafio, pois nunca há meios de prever a sua beleza.
Você, minha Rosa, tem a beleza da Lua. Uma beleza mutante, que desconstrói as possibilidades de prendê-la a qualquer rótulo ou arquétipo. É uma beleza diferente, é a beleza das belezas, a infinitude da alma expressa em carne, osso e coração.
É a beleza que me faz feliz, que completa meu mundo". Patrick Zanon.

sábado, 6 de setembro de 2008

Fotografia de Mallarmé

Ferreira Gullar



é uma foto
premeditada
como um crime

basta
reparar no arranjo
das roupas os cabelos
a barba tudo
adrede preparado
- um gesto e a manta
equilibrada sobre
os ombros
cairá - e
especialmente a mão
com a caneta
detida
acima da
folha em branco: tudo
à espera
da eternidade

sabe-se:
após o clique
a cena se desfez
na rue de Rome a vida voltou
a fluir imperfeita
mas
isso a foto não
captou que a foto
é a pose a suspensão
do tempo
agora
meras manchas
no papel rastro

mas eis que
teu olhar
encontra o dele
(Mallarmé) que
ali
do fundo
da morte
olha

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Ouvindo apenas

Ferreira Gullar


e gato e passarinho
e gato
e passarinho (na manhã
veloz
e azul
de ventania e ar
vores
voando)
e cão
latindo e gato e passarinho (só
rumores
de cão
de gato
e passarinho
ouço
deitado
no quarto
às dez da manhã
de um novembro
no Brasil)

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Os mortos

Ferreira Gullar


os mortos vêem o mundo pelos olhos dos vivos
eventualmente ouvem, com nossos ouvidos, certas sinfonias
algum bater de portas, ventanias
Ausentes de corpo e alma misturam o seu ao nosso riso
se de fato quando vivos acharam a mesma graça

Setembro: Mês de Ferreira Gullar


No dia 10 de setembro de 1930, nasce o poeta Ferreira Gullar, em São Luís, Maranhão. Seu nome, na verdade, é José Ribamar Ferreira, o quarto dos 11 filhos de Alzira Ribeiro Goulart e do comerciante Newton Ferreira.
Apaixonado por uma menina, Gullar, em 1943, decide abrir mão de seus dois grandes amigos, "Esmagado" e "Espírito da Garagem da Bosta", e ficar recluso dentro de casa lendo e escrevendo poemas.
Em 1950, Gullar vê a polícia matar um operário num comício. Locutor da Rádio Timbira, que era do governo estadual, Gullar nega-se a ler em seu programa uma nota oficial que apontava os comunistas como responsáveis pelo crime. Acaba sendo demitido. No mesmo ano, seu poema "O galo" vence um concurso do "Jornal de letras", cuja comissão julgadora era composta por Manuel Bandeira, Odylo Costa Filho e Willy Lewin.
Lança o livro de poemas "A luta corporal", em 1954, que vinha sendo escrito desde 1950. Seu projeto gráfico inovador rende a Gullar um desentendimento com os tipógrafos. Depois de lerem o livro, os poetas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, que viriam a criar o concretismo, decidem conhecê-lo. Gullar vai trabalhar como revisor (e depois redator) na revista "Manchete" e casa-se com a atriz Thereza Aragão, com quem teria os filhos Luciana, Paulo e Marcos.
Em dezembro de 1956, Gullar participa da I Exposição Nacional de Arte Concreta, aberta no Museu de Arte Moderna de São Paulo e montada depois no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro.
Em 1957, por discordar do artigo "Da psicologia da composição à matemática da composição", escrito pelo grupo concretista de São Paulo, Gullar rompe com o movimento.
Lança o livro "Poemas"em 1958.
No ano seguinte, Gullar escreve o "Manifesto neoconcreto" e a "Teoria do não-objeto", que imprimem um novo rumo à vanguarda brasileira. O manifesto, publicado por ocasião da I Exposição Neoconcreta, foi assinado também por Amílcar de Castro, Aluísio Carvão, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lígia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis.

Fonte: Portal Literal - site oficial de Ferreira Gullar.